13/09/2013

A theologia crucis principia com a liturgia


A theologia crucis faz parte da Igreja Ocidental e principia com a liturgia, assim como toda teologia genuína. Estas bases litúrgicas, na verdade, remetem ao Oriente, mais precisamente à Igreja Síria ao invés da Grega. Será que a afinidade dos sírios à linguagem e, consequentemente, também ao pensamento do Antigo Testamento levou a uma melhor compreensão do Evangelho do Cordeiro de Deus do Antigo Testamento? O Agnus Dei foi incluído na missa romana por um papa de origem síria por volta do ano 700 d. C.; assim também a menção do Cordeiro de Deus no Gloria tem origem no Oriente. Além do território sírio original, Jerusalém é o lugar onde a morte de nosso Senhor foi, naturalmente, comemorada de uma maneira especial. Neste lugar, a Igreja do Santo Sepulcro, construída por Constantino, com as supostas relíquias da Santa Cruz, tornou-se o destino de peregrinações de todas as partes da cristandade e a base da veneração da cruz, que logo se espalhou por toda a igreja e estabeleceu seu primeiro centro no Ocidente, na Igreja da “Santa Cruz de Jerusalém” em Roma.

Esta veneração da cruz, ainda hoje uma parte da liturgia romana da Sexta-feira Santa, é por assim dizer, a forma mais antiga da theologia crucis. Pois foi pela forma indireta da veneração da cruz e das relíquias da cruz que a devoção pelo Crucificado se tornou uma característica importante da piedade medieval ocidental. Os dois grandes hinos da cruz que pertencem à liturgia da Sexta-feira Santa, ainda hoje, o “Pange lingua gloriosi” [Canta, minha língua, o glorioso combate] e “Vexilla regis prodeunt” [Do Rei avança o estandarte] são hinos dirigidos não ao Crucificado, mas à cruz. Venâncio Fortunato [c. 530-610] escreveu-os por volta do ano 600 d. C., inspirado pelo entusiasmo pelas relíquias da cruz que o imperador Justino II havia enviado naquela época à Radegunda, rainha dos francos. O “Pange lingua” louva o “Crucis trophaeum”, a cruz como sinal de vitória, e dirige-se a ela, a Santa Cruz, como a santa árvore do Paraíso que havia se tornado o instrumento de salvação. A aplicação dessa antiga ideia cristã faz lembrar o culto das árvores sagradas que era comum para os povos germânicos:

Sola digna tu fuisti
Ferre mundi victimam
Atque portum praeparare
Arca mundo naufrago
Quam sacer cruor perunxit
Fusus Agni corpore.

Só tu, ó Cruz, mereceste
suster o preço do mundo
e preparar para o náufrago
um porto, em mar tão profundo.
Quis o cordeiro imolado
banhar-te em sangue fecundo.

Da mesma forma, o poderoso hino de batalha e vitória “Vexilla regis prodeunt”, dirige-se ao santo madeiro (árvore):

O crux, ave, spes unica 
Hoc passionis tempore
Piis adauge gratiam
Reisque dele crimina.

Salve, ó cruz, doce esperança,
concede aos réus remissão;
dá-nos o fruto da graça,
que floresceu na Paixão.

Foi um longo caminho de voltas que finalmente levou, após 500 anos, dessa adoração do santo madeiro para o “Salve caput cruentatum”, a saudação da Alta Idade Média ao Crucificado.

Olhando mais de perto, esta antiga theologia crucis aparenta ser um típico exemplo do que Lutero mais tarde chamou de theologia gloriae. A cruz é uma revelação direta da glória de Deus na terra. Ela precede triunfantemente os exércitos vitoriosos dos imperadores cristãos e as hostes valentes da Igreja Militante. Assim como nos primeiros séculos os demônios fugiam do sinal da cruz, agora os inimigos da igreja fogem confusos onde o estandarte da cruz ou as relíquias da cruz aparecem. Quem pode resistir ao poder deste sinal? A cruz é o sinal pelo qual a vitória infalível é conquistada. Nela, o poder de Deus se torna visível no mundo.

Uma profunda mudança aconteceu na vida interior da cristandade quando o sofrimento da cruz foi compreendido pela primeira vez nas igrejas e mosteiros da Europa. Esta mudança tornou-se visível nos crucifixos da Idade Média. O Crucificado não está mais como vencedor no madeiro da cruz, como no período Românico, mas está pendurado na cruz, sofrendo, posteriormente, até se contorcendo de dores, e morrendo. Esta mudança é completa na Baixa Idade Média quando os grandes crucifixos sobre o presbitério nas catedrais góticas não mostram mais o Crucificado como o vencedor divino, mas realisticamente como o homem das dores. É sentida a profundidade do sofrimento de Cristo. O Christus humilis, o Deus-homem no estado da mais profunda humildade, torna-se o irmão do ser humano. E a imitatio Christi mesmo no sentido de um sentimento místico de todas as dores do Crucificado se torna um ideal da piedade cristã medieval. Certamente foi apenas uma pequena minoria do povo da igreja que experimentou isso. Mas todos foram ao menos tocados por essa ideia. A liturgia e toda a atmosfera das igrejas já tinham cuidado disso.

Hermann Sasse, Cartas a Pastores Luteranos, 18 de abril de 1951.

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